6/23/2012

O que vale mais?


O que vale mais para ego?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz para não roubar,
Os homens apenas punem,
Pois o prazer de ser homem
É maior que o homem de ser Deus.

O que vale mais para vida?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz cuide bem dela,
Os homens a humaniza,
Pois a necessidade de ser homem
É maior que a vontade de ser Deus.

O que vale mais para o amor?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz ame ao próximo,
Os homens vão e amam,
Pois a coragem de amar o homem
É maior que a palavra de ser Deus.

O que vale mais para o ético?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz o bem é isso,
Os homens são inconsequentes,
Pois a incompreensão de ser homem
É maior que a consciência de ser Deus.

O que vale mais para o político?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz busquem a justiça,
Os homens usam os meios necessários,
Pois a finalidade de ser homem
É maior que os meios que tem Deus.

O que vale mais para o religioso?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz orem,
Os homens vão e cobram,
Pois a sobrevivência de ser homem
É maior que os ouvidos de Deus.

O que vale mais para o justo?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz isso é justo,
Os homens vão e cumprem,
Pois a carência do homem
É maior que o poder de Deus.

O que vale mais para a democrata?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz aguardem o momento,
Os homens vão em movimento
Pois a participação dos homens
É maior que abstenção de Deus.

O que vale mais para o livre?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz tens arbítrio,
Os homens pedem condições
Pois o pagamento por ser homem
É maior que a liberdade de ser Deus.

O que vale mais para o solidário?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz faça caridade,
Os homens tem maldade
Pois a comunhão de ser homem
É maior que o ativismo de Deus.

O que vale mais para o comunista?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz somos iguais
Os homens finge que acreditam
Pois a busca de ser homem
É maior que a presença de Deus.

O que vale mais para o rico?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz você merece,
Os homens pobres apenas lhe oferece,
Pois a segurança de ser homem
É maior que a necessidade de ser Deus.

O que vale mais para o pobre?
A lei de Deus ou a Lei dos homens?
Deus diz para aceitar,
Os homens irão impedir,
Pois a ganância de ser homem
É maior que a justiça de Deus.

11/20/2010

O fato é

O fato é: o twitter cientificamente reduz a capacidade de escrever textos loooongos.

11/05/2007

Lendo Weber

No momento estou lendor Max Weber, Ciência e Política: duas vocações, está interessantes e irá me ajudar no projeto de doutorado. Vamos ver no que dará...

6/26/2007

A arte de escrever

Na verdade teria que elaborar um texto de forma coerente, com opiniões, reflexões e tudo que um bom texto merece, mas sinceramente não estou nem um pouco com vontade para fazer. Portanto, vai no mesmo esquema do link Literatura, alguns trechos do livro de Artur Schopenhaurer, o primeiro livro que li em que diz que ler muito faz mal. Vejam:

“Uma pessoa só deve ler quando a fonte dos seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante freqüência mesmo entre as melhores cabeças” (p. 42).

“Assim como a leitura, a mera experiência não pode substituir o pensamento. A pura empiria está para o pensamento como o ato de comer está para a digestão e a assimilação. Quando a experiência se vangloria de que somente ela, por meio de suas descobertas, fez progredir o saber humano, é como se a boca quisesse se gabar por sustentar sozinha a existência do corpo” (p. 49).

“... quem quer se instruir a respeito de um tema deve se resguardar de pegar logo os livros mais novos a respeito, na pressuposição de que as ciências estão em progresso contínuo e de que, na elaboração desse livro, foram usadas as obras anteriores [...] Assim, o curso da ciência muitas vezes é um retrocesso” (p. 59-61).

“Assim, em geral vale aqui, como em toda parte, a regra: o novo raramente é bom, porque o que é bom só é novo por pouco tempo” (p. 61).

“Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou, ou na forma, isto é, na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria [...]. Portanto, quando um livro é célebre, é preciso distinguir se isso se deve à matéria ou à forma. Pessoas comuns e superficiais podem nos oferecer, graças à matéria, livros muito importantes, uma vez que o tema só era acessível a elas. É o caso, por exemplo, das descrições de países distantes, de fenômenos naturais raros, de experimentos realizados por elas, de histórias das quais foram testemunhas ou cujas fontes tiveram tempo e dedicação para investigar e estudar” (p. 63-64).

“Em contrapartida, quando o importante é a forma, já que a matéria é acessível a todos, ou já conhecida, portanto quando apenas o que é pensado pode dar valor ao esforço de pensar sobre esse tema, só uma mente de destaque é capaz de nos oferecer algo digno de ser lido” (p. 64).

“mais sábio o ignorante em sua casa do que o sábio na casa alheia” (p. 66).

“Assim, logo que nosso pensamento encontrou palavras, ele já deixa de ser algo intimo, algo sério no nível mais profundo. Quando ele começa a existir para os outros, pára de viver em nós, da mesma maneira que o filho se separa da mãe quando passa a ter sua existência própria. Como diz o poeta:
Não me venham confundir com contradições!
Logo que falamos, começamos a errar.” (p. 67).

“Em geral, a cordialidade proveniente da sociedade é um elemento estranho na literatura, com freqüência um elemento danoso, porque exige que se chame o ruim de bom, contrariando diretamente tanto os objetivos da ciência quanto os da arte” (p. 72).

“Um autor deveria, pelo contrário, evitar acima de tudo o esforço de demonstrar mais talento do que de fato tem, porque isso desperto no leitor a desconfiança de que ele possui muito pouco, uma vez que só se finge ter algo que realmente não se tem. Justamente por isso é um elogio quando se chama um autor de ingênuo, porque significa que ele pode se mostrar como realmente é. Em geral, a ingenuidade atrai, enquanto a artificialidade causa repulsa” (p. 84).

“Seria proveitoso que os escritores alemães chegassem à conclusão de que, embora de fato se deva pensar como um grande espírito, sempre que possível deve-se falar a mesma linguagem das outras pessoas. Palavras ordinárias são usadas para dizer coisas extraordinárias; mas eles fazem o contrário” (p. 90).

“Querem dar a impressão, côo Fichte, Schelling e Hegel, de saber o que não sabem, de pensar o que não pensam, de dizer o que não dizem. Pois alguém que tem algo certo a dizer iria fazer esforço para falar de modo obscuro ou claro? Como diz Quintiliano: ‘Ordinariamente ocorre que as coisas ditas por um homem instruído são mais fáceis de entender e muito mais claras... E alguém será tanto mais obscuro quanto menos valer’” (p. 92).

Estilo subjetivo: “Consiste no fato de que basta ao escritor sabor o que ele quer e pretende dizer; o leitor que se arranje para acompanhá-lo. Sem se preocupar com isso, ele escreve como se recitasse um monólogo, quando deveria estabelecer um diálogo, e na verdade um diálogo no qual é preciso se expressar de modo ainda mais claro, já que não se ouvem as perguntas do interlocutor. Exatamente por esse motivo, o estilo não deve ser subjetivo, mas objetivo; e para tanto é necessário dispor as palavras de maneira que elas forcem o leitor, de imediato, a pensar exatamente o mesmo que o autor pensou” (p. 111).

“Quem escreve de maneira displicente confessa com isso, antes de tudo, que ele mesmo não atribui grande valor a seus pensamentos” (p. 112).

“Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar. É por isso que sentimos um alívio ao passarmos da ocupação com nossos próprios pensamentos para a leitura” (p. 127).

“Mas é este o caso de muitos eruditos: leram até ficarem burros. Pois a leitura contínua, retomada de imediato a cada momento livre, imobiliza o espírito mais do que o trabalho manual contínuo, já que é possível entregar-se a seus próprios pensamentos durante esse trabalho [...]. Pois, quanto mais se lê, menor a quantidade de marcas deixadas no espírito pelo que foi lido: ele se torna como um quadro com muitas coisas escritas sobre as outras. Com isso não se chaga à ruminação: mas é só por meio dela que nos apropriamos do que foi lido, assim como as refeições não nos alimentam quando comemos, e sim quando digerimos” (p. 128).

“Para ler o que é bom uma condição é não ler o que é ruim, pois a vida é curta, o tempo e a energia são limitados” (p. 133).

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2007.

6/25/2007

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Sérgio Buarque de Holanda é antes de tudo um historiador da formação do espírito personalista brasileiro, busca nas raízes comportamentais de nossa história os significados que dão sentido para nossa atualidade. Originalidade e profundidade são marcas visíveis na construção de seu pensamento. São análises que além de explicar nossa sociedade atual desvelam detalhes que na maioria das vezes passam desapercebidos por nossos olhos viciados pelo moderno e emergidos no fluxo das forças históricas que forjam nossa individualidade.
A originalidade do pensamento de Holanda reflete na construção do objeto cognitivo, o Brasil. Sua primeira idéia que merece ser destacada é que poderemos realizar grandes obras, produzir uma sociedade sólida e faraônica, mas sempre ficará a impressão que nossa evolução possuiu outra paisagem, um clima próprio, em comparação com outras sociedades. Está idéia é resultado do nosso processo histórico que nos atribuirá particularidades que perdurarão pelos tempos. E serão as análises dessas particularidades, sobretudo sob o ponto de vista cultural, que Sérgio Buarque de Holanda nos brindará com seu brilhantismo.


Indivíduo e Sociedade

A primeira idéia que salta aos olhos do leitor é a formação de um espírito coletivo que atribui um grande valor a individualidade. Característica presente na formação cultural de nossos colonizadores e que herdamos durante o tempo. “Pode dizer-se, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional” (p. 04).
Para espanhóis e portugueses a medida do indivíduo é a extensão em que este mesmo indivíduo não precise dos demais. Quanto mais autônomo for a pessoa mais valor terá dentro da sociedade, quanto menos precisar da fraternidade dos outros mais digno será de honras. Cada um é filho e pai de si mesmo. É dessa característica que resultará a singular fraqueza nas organizações e associações coletivas. A associação coletiva só terá êxito quando for pressionada por forças exteriores que exercem poder, respeito ou até mesmo terror. “Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida” (p. 04).
Com esta característica tão presente em nossa sociedade os elementos anárquicos facilmente frutificam-se com a cumplicidade das instituições e costumes. Os decretos dos governos sempre nasceram da necessidade de conter e frear as paixões momentâneas individuais, foram raras as vezes que se tinha a pretensão de associar forças em beneficio ao coletivo. Nossa falta de “ordem e progresso” não é uma característica moderna, estão presentes em nossas raízes. “A falta de coesão em nossa vida social não representa, assim, um fenômeno moderno. E é por isso que erram profundamente aqueles que imaginam na volta à tradição a única defesa possível contra nossa desordem” (p. 05). Defender a volta ao passado glorioso como solução aos problemas atuais, portanto, é um farsa ideológica baseada em um equívoco analítico.
Trata-se de um comportamento que louva o livre arbítrio em detrimento da coletividade. Para espanhóis e portugueses o indivíduo está no centro da sociedade e qualquer teoria que nega esta vontade é encarada com desconfiança e antipatia. “Nunca eles se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento” (p. 09). Esta mentalidade foi o maior empecilho que encontraram nossas organizações, fato, por exemplo, que não acontece com as civilizações onde o protestantismo impera. O fato é que entre “as doutrinas que apregoam o livre arbítrio e a responsabilidade pessoal são tudo, menos favorecedoras da associação entre os homens” (p. 09).
Outro aspecto presente na filosofia desses povos gira em torno da visão do trabalho. Como vimos, o desenvolvimento da sociedade capitalista tem como força propulsora o trabalho. “E um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho” (p. 09). Conforme Sérgio Buarque de Holanda, a psicologia dos povos colonizadores do Brasil tem como marca indelével a repulsa à moral trabalhadora. Este aspecto tem como fundamento a submissão dos indivíduos às leis estranhas e exteriores que o vinculo com o trabalho estabelece, ou seja, “a ação sobre as coisas, sobre o universo material, implica submissão a um objeto exterior, aceitação de uma lei estranha ao indivíduo” (p. 10).
É compreensível porque não se tenha enraizado entre nós a moderna religião ao trabalho e o apreço à atividade utilitária. Enquanto os povos protestantes exaltam o esforço manual, nas nações ibéricas predomina a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor. Esta concepção se ajusta a reduzida capacidade de organização social, pois o esforço humilde, anônimo e desinteressado é agente poderoso da solidariedade dos interesses e estimula a organização racional entre os homens e sustenta sua coesão. A moral do trabalho dissemina a harmonia entre os interesses. “O certo é que, entre espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico. Não admira que fossem precárias, nessa gente, as idéias de solidariedade” (p. 10).
Entre esses povos a solidariedade existe somente onde há vinculação de sentimentos. Daí a questão da família ser a grande portadora da associação no Brasil. A exaltação do indivíduo, da personalidade faz com que a obediência não apareça nos povos ibéricos como virtude suprema, pois lhes custam renunciar à personalidade em virtude de um bem maior. Por isso a obediência cega tem sido até agora o único princípio político verdadeiramente forte. “A vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem” (p. 11). São dois lados da mesma moeda, ou seja, em um extremo temos a obediência cega que comanda os princípios políticos desenvolvidos no país, que favorecem ao espírito totalitário e ditador, do outro, temos a disposição para a falta de regras inclinando-se à anarquia ou à desordem. São dois extremos que só existem em estado puro na abstração, eles se efetivaram e comandaram grandes obras na história do país. De um lado, temos a ditadura como exemplo sintomático da pré-disposição para o comando totalitário e obediência cega, e do outro, podemos citar o momento anterior à independência política do país. Cada uma se objetivou de maneira particular no desenvolvimento histórico do país, e cada uma orienta nossas ações cotidianas de maneira especifica. O que se tem em comum é a obediência como princípio disciplinador e não o espírito associativo em proveito da coletividade. Via de regra, apenas nos associamos quando somos forjados a obedecer em benefício do bem comum, dificilmente temos uma consciência coletiva apurada que orientam nossas ações. Desta maneira, a obediência é nosso freio à desordem coletiva, ao anarquismo.
Para Holanda a cultura só absorve e assimila traços de outras culturas quando encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. No Brasil, mesmo o contato e a mistura com raças indígenas não fez desaparecer o que ainda nos associa a Portugal: a cultura. A cultura de nosso povo carrega em si fortes traços de nossos colonizadores, pois mesmo com a mistura entre etnias diferentes a assimilação só foi possível devido a adequação na vida cotidiana.

O aventureiro e o trabalhador

Nossa exploração não se processou de forma metódica e racional, não emanou de uma vontade construtora e enérgica; ao contrário, fez-se com desleixo e certo abandono, o que não tira a grandeza do esforço português. É preciso compreender alguns aspectos da psicologia do movimento de expansão colonial portuguesa para entendermos o processo de colonização que forjou nossa cultura.
Existem dois princípios que se combatem e regulam nos homens: o aventureiro e o trabalhador. Nas próprias sociedades rudimentares encontramos esta distinção entre os povos caçadores e os povos lavradores. Para os aventureiros o objeto final, o ponto de chegada é tão importante que dispensa todos os processos intermediários, por quase supérfluos que são. “Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore. Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele em generosa amplitude e onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes” (p. 13).
“O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante, tem sentido bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmente restrito” (p. 13).
Tanto em um caso, quanto no outro, existe uma ética que orientam as ações, ou seja, “existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo [...] Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador” (p. 13).
Entre os dois não há uma oposição absoluta e incompreensão radical. Ambos participam de combinações diversas e seu estado puro não tem existência fora do mundo das idéias. No entanto, são importantes para compreender e situar os homens em seus conjuntos sociais. Na colonização ao trabalhador coube papel quase nulo. A época precisava de gestos e façanhas audaciosas, fruto do espírito aventureiro. “E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura?” (p. 15).
Portanto, a característica que comandou a nossa colonização foi a manifestação e objetivação da ética do aventureiro. O gosto da aventura foi decisiva na formação de nossa vida nacional. Num conjunto de fatores tão diversos, como as raças que aqui se chocaram, os costumes e padrões de existência que nos trouxeram, as condições mesológicas e climatéricas que exigiam longo processo de adaptação, a ética aventureira foi o elemento orquestrador por excelência. “O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho” (p. 19). O trabalho ficou a cargo da introdução do braço negro africano.
Esta característica juntamente com as condições naturais de nossa terra provocou o uso de artifícios rudimentares em nossa agricultura brasileira. Para se edificar uma agricultura desenvolvida tecnicamente era preciso paciência, esforço individual, trabalho concentrado e sistemático. “Acontece que, no Brasil, as condições locais quase impunham, pelo menos ao primeiro contato, muitos daqueles métodos ‘maus’ e que, para suplantá-los, era mister uma energia paciente e sistemática. O que, com segurança, se pode afirmar dos portugueses e seus descendentes é que jamais se sentiram eficazmente estimulados a essa energia” (p. 21). Trata-se de uma junção entre as circunstâncias locais e a psicologia colonizadora, forjando um estado da lei do mínimo esforço para o desenvolvimento econômico e político do país. Desta maneira, os métodos que implementaram no Brasil não representaram nenhum progresso essencial sobre os que praticavam os indígenas do país. É uma característica clara e evidente de adaptação entre as culturas em proveito de ajustes circunstanciais. “O princípio que, desde os tempos mais remotos da colonização, norteara a criação da riqueza no país, não cessou de valer um só momento para a produção agrária. Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios. Ou, como já dizia o mais antigo dos nossos historiadores, queriam servir-se da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, ‘só para a desfrutarem e a deixarem destruída’” (Frei Vicente de Salvador, História do Brasil. 3ª ed. São Paulo, s.d. apud p. 21). “Não cabia, nesse caso, modificar os rudes processos dos indígenas, ditados pela lei do menor esforço, uma vez, é claro, que se acomodassem às conveniências da produção em larga escala. Nossos colonizadores eram, antes de tudo, homens que sabiam repetir o que estava feito ou o que lhes ensinara a rotina” (p. 22).
Outro aspecto importante que Sérgio Buarque de Holanda apresenta sobre as características de nossos colonizadores é a falta de orgulho de raça entre eles. Esta realidade se explica em partes que os portugueses já na época do descobrimento do Brasil ser um povo mestiço. Isso explica o fato de os indígenas da África Oriental os considerarem como quase iguais, tanto que distinguem europeus de portugueses. “A isso cumpre acrescentar outra face bem típica de sua extraordinária plasticidade social: a ausência completa, ou praticamente completa, entre eles, de qualquer orgulho de raça” (p. 22). E acrescenta que “o escravo das plantações e das manias não era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse pelo combustível. Com freqüência as suas relações com os donos oscilavam da situação de dependente para a de protegido, e até de solidário e afim. Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer idéia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação” (p. 24). Assim, o exclusivismo “racista” não foi fator determinante das medidas que reservavam aos brancos o exercício de determinados empregos. Muito mais decisivo foi o tipo de trabalho vil a que era obrigado os escravos. A chave para compreender a separação das ocupações segundo Holanda, é na verdade a natureza e o significado do trabalho dentro da cultura portuguesa e não o sentimento de superioridade étnica.
Tal idéia será confirmada pelas relações entre portugueses e indígenas. “É curioso notar como algumas características ordinariamente atribuídas aos nossos indígenas” sua ociosidade, aversão ao esforço disciplinado, sua imprevidência, intemperança, seu gosto por atividades predatórias e não produtivas, ajustam-se de forma bem precisa aos tradicionais padrões de vida das classes nobres portuguesas (p. 25).
Desta forma, a busca ao ganho fácil criou-se infixidez nos trabalhos rurais e urbanos. “Poucos indivíduos sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister sem se deixarem atrair por outro negócio aparentemente lucrativo” (p. 28). Esta situação tornou-se um empecilho para constituição de um verdadeiro artesanato no Brasil e futuramente dificultou o desenvolvimento da indústria nacional. “O que sobretudo nos faltou para o bom êxito desta e de tantas outras formas de labor produtivo foi, seguramente, uma capacidade de livre e duradoura associação entre os elementos empreendedores do país” (p. 29).

Herança Rural

Toda a estrutura de nossa sociedade colonial tem sua base nos meios rurais. É preciso ter claro esse fato para compreendermos as condições de governabilidade até muito depois da independência política e cujos reflexos existem até hoje.
A civilização brasileira tem em suas raízes o universo rural, em que a vida colonial se organizava efetivamente nas propriedades rústicas e as cidades são apenas simples dependências destas. Tal situação pouco se modificou até à época da Abolição, 1888, que “representa o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assume significado singular e incomparável” (p. 41).
O poder político monárquico ainda estava nas mãos dos fazendeiros escravocratas e de seus filhos educados em profissões liberais, monopolizando a política. Em meados do século XIX, especialmente nos anos 51 a 55, ocorreram diversas reformas no país: constituição de sociedades anônimas, fundação do segundo Banco do Brasil, inauguração da primeira linha telegráfica na cidade do Rio de Janeiro, fundação do Banco Rural e Hipotecário, abertura da primeira linha de estradas de ferro do país. Assim, a organização e expansão do crédito bancário e o conseqüente estímulo à iniciativa privada, a rapidez na circulação das notícias, o estabelecimento de meios de transportes modernos. “Pode-se mesmo dizer que o caminho aberto por semelhantes transformações só poderia levar logicamente a uma liquidação mais ou menos rápida de nossa velha herança rural e colonial, ou seja da riqueza que se funda no emprego do braço escravo e na exploração extensiva e perdulária das terras de lavoura” (p. 42).
Foi, portanto, nesse período que se deu o primeiro passo para a abolição da escravidão: a supressão do tráfico negreiro. “Primeiro passo e, sem dúvida, o mais decisivo e verdadeiramente heróico, tendo-se em conta a trama complexa de interesses mercantis poderosas, e não só de interesses como de paixões nacionais e prejuízos fundamente arraigados, que a lei Eusébio de Queirós iria golpear de face” (p. 42-43).
Em 1849 foram trazidos 54.000 negros para o Brasil, em 1850, com a lei Eusébio de Queirós em vigor, foram registrados 23.000 negros. Assim, o capital que era destinado a compra de escravos ficou disponível para investimentos no país. O desfecho dessa situação foi a primeira crise comercial em 1864: “Essa crise foi o desfecho normal de uma situação rigorosamente insustentável nascida da ambição de vestir um país ainda preso à economia escravocrata, com os trajes modernos de uma grande democracia burguesa” (p. 46).
Com o declínio da velha lavoura e ascensão dos centros urbanos surgem outras ocupações que reclamam igual eminência: a atividade política, a burocracia, as profissões liberais. “É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber, em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sito atribuídos específicos de sua primitiva condição” (p. 50).
A tal circunstância se relaciona a valorização das qualidades de inteligência, em detrimento do espírito prático e positivo. “O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensamento especulativo [...], mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara” (p. 50-51).
“Na ausência de uma burguesia urbana independente, os candidatos às funções novamente criadas recrutam-se, por força, entre indivíduos da mesma massa dos antigos senhores rurais, portadores de mentalidade e tendência características dessa classe. Toda a ordem administrativa do país, durante o Império e mesmo depois, já no regime republicano, há de comportar, por isso, elementos estreitamente vinculados ao velho sistema colonial” (p. 57).
A regra em todo o mundo sempre foi a prosperidade dos meios urbanos à custa dos centros de produção agrícola. “Se não parece muito exato dizer-se que tivemos entre nós justamente o reverso de tal medalha, é por ter sido precário e relativo o incremento das nossas cidades durante todo o período colonial. Deve-se reter, todavia, este fato significativo, de que, naquele período, os centros urbanos brasileiros nunca deixaram de se ressentir fortemente da ditadura dos domínios rurais. É importante assinalar-se tal fato, porque ajuda a discriminar o caráter próprio das nossas cidades coloniais. As funções mais elevadas cabiam nelas, em realidade, aos senhores de terras” (p. 57-58).

Afetivo e racional, público e privado

A competição e a cooperação são comportamentos orientados para um objetivo material comum: “é, em primeiro lugar, sua relação com esse objetivo o que mantém os indivíduos respectivamente separados ou unidos entre si. Na rivalidade e na prestância, ao contrário, o objetivo material comum tem significação praticamente secundária; o que antes de tudo importa é o dano ou o beneficio que uma das partes possa fazer à outra” (p. 30).
Sérgio Buarque irá apresentar como espírito presente em nossa formação a rivalidade e a prestância. Trata-se de comportamentos que envolvem antes de tudo o afetivo, o emocional, o passional, que irão ser prejudiciais para nossa formação política, pois o racional, o disciplinador fica subjugado a tais elementos. “O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente” (p. 31). E continua: “Uma suavidade dengosa e açucarada invade, desde cedo, todas as esferas da vida colonial. Sinuosa até na violência, negadora de virtudes sociais, contemporizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva [...]” (p. 31).
Uma das principais conseqüências dessa característica é a relação entre o público e o privado, ou no caso, a confusão e assimilação deturpada entre essas duas esferas. O Estado por essência não é uma ampliação e continuação da estrutura familiar. No entanto, essa idéia esteve presente na formação do Estado brasileiro do século XIX, de acordo com os doutrinadores da época “o Estado e as suas instituições descenderiam em linha reta, e por simples evolução da Família. A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem domestica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, antes as leis da Cidade. [...] A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência”. Portanto, “não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição” (p. 101).
O que ocorre na formação do Estado brasileiro é que “a entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades [...] O resultado era predominar, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pelo família” (p. 50).
Outro setor que irá sofrer com tais características em que o afetivo prevalece em detrimento do racional será a esfera da produção e sua evolução. “Nas velhas corporações o mestre e seus aprendizes e jornaleiros formavam como uma só família, cujos membros se sujeitam a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privações e confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores e empregados nos processos de manufatura e diferenciando cada vez mais suas funções, suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fácil, além disso, ao capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos” (p. 102).
Para o empregador moderno o empregado é um simples número, a relação humana desapareceu. “A produção em larga escala, a organização de grandes massas de trabalho e complicados mecanismos para colossais rendimentos, acentuou, aparentemente, e exacerbou, a separação das classes produtoras, tornando inevitável um sentimento de irresponsabilidade, da parte dos que dirigem, pelas vidas dos trabalhadores manuais. Compare-se o sistema de produção, tal como existia quando o mestre e seu aprendiz ou empregado trabalhavam na mesma sala e utilizavam os mesmos instrumentos, com o que ocorre na organização habitual da corporação moderna. No primeiro, as relações de empregador e empregado eram pessoais e diretas, não havia autoridades intermediárias. Na última, entre o trabalhador manual e o derradeira proprietário – o acionista – existe toda uma hierarquia de funcionários e autoridades representados pelo superintendente da usina, o diretor-geral, o presidente da corporação, a junta executiva do conselho de diretoria e o próprio conselho de diretoria. Como é fácil que a responsabilidade por acidentes do trabalho, salários inadequados ou condições anti-higiênicas, se perca de um extremo ao outro dessa série” (p. 102).
Este exemplo demonstra as dificuldades em substituir a velha ordem familiar por outra, em que as instituições e relações sociais fundadas em princípios de afeto e sangue são substituídas por princípios abstratos. Tanto é que as teorias pedagógicas modernas tendem cada vez mais separar o indivíduo da comunidade doméstica, libertá-lo das virtudes familiares dizendo que tal libertação e separação são condições primárias e obrigatórias de qualquer adaptação à “vida prática” (p. 103). Trata-se de um reforço da construção da individualidade. “Entre nós, mesmo durante o Império, já se tinham tornado manifestas as limitações que os vínculos familiares demasiado estreitos, e não raro opressivos, podem impor à vida ulterior dos indivíduos. [...] Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão aposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária. Por isso mesmo Joaquim Nabuco pôde dizer que ‘em nossa política e em nossa sociedade, são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam” (p. 104). Trata-se de uma época em que a concorrência entre os cidadãos possui valor social positivo. “No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas rurais para a esfera de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje” (p. 105).
“Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionários e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, a muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos.
No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados ‘contatos primários’, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas” (p. 105-106).
Diante dessa situação em que o afetivo se sobrepõe ao racional, Sérgio Buarque de Holanda, irá afirmar que a contribuição brasileira para a civilização será o “homem cordial”. A hospitalidade, a generosidade são virtudes definidas no caratê brasileiro. No entanto, “seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. [...] Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intactas sua sensibilidade e suas emoções” (p. 106-107).
O “homem cordial” será uma legítima manifestação exterior que revela o triunfo do indivíduo sobre a sociedade. “Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ente o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo” (p. 108).
Sérgio Buarque de Holanda irá citar como exemplo o domínio da lingüística, que esse modo de ser reflete no habitual emprego dos diminutivos. “A terminação ‘inho’, aposta às palavras, serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo” (p. 108). Outro exemplo é a omissão do nome de família no tratamento social. “Seria talvez plausível relacionar tal fato à sugestão de que o uso do simples prenome importa em abolir psicologicamente as barreiras determinadas pelo fato de existirem famílias diferentes e independentes umas das outras. [...] O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade. E é tão característica, entre nós, essa maneira de ser, que não desaparece sequer nos tipos de atividades que devem alimentar-se normalmente da concorrência” (p. 108-109).
É possível observar esta característica em nossa formação religiosa. Nossos cultos religiosos são “sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, ‘democrático’, um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso. [...] A uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaboração política seria possível senão fora dela, fora de um culto que só apelava para os sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razão e a vontade. Não admira pois, que nossa República tenha sido feita pelos positivistas, ou agnósticos e nossa Independência fosse obra de maçons” (p. 110-111).
A Proclamação da República, em 1889, teve como conselheiros os positivistas. Na realidade brasileira eles formaram uma forma de pensar fugindo da realidade, atribuindo ao poder das idéias a responsabilidade de comandar a realidade. “Trouxemos de terras estranhas um sistema complexo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto se ajustam às condições da vida brasileira e sem cogitar das mudanças que tais condições lhe imporiam. Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incomoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido, uma aristocracia rural e semifeudal importou-se e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sito, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos” (p. 119).
“Se a data da Abolição marca no Brasil o fim do predomínio agrário, o quadro político instituído no seguinte quer responder à conveniência de uma forma adequada à nova composição social. Existe um elo secreto estabelecendo entre esses dois acontecimentos e numerosos outros uma revolução lenta, mas segura e concertada, a única que, rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional” (p. 126). “E efetivamente daí por diante estava melhor preparado, o terreno para um novo sistema, com seu centro de gravidade não já nos domínios rurais, mas nos centros urbanos” (p. 127).
“É curioso notar-se que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo: foram de inspiração intelectual, se assim se pode dizer, tanto quanto sentimental. Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política, vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência, ou hostilidade. Não emanavam de uma predisposição espiritual e emotiva particular, de uma concepção da vida bem definida e específica, que tivesse chegado à maturidade plena” (p. 119).
Holanda atribuí à vida intima do brasileiro uma falta de coesão e disciplina, trata-se de personalidades livres, pois assimilam sem maiores dificuldades gestos e formas que encontram no caminho. Cada indivíduo vive conforme princípios domésticos, afirmando-se indiferente as leis gerais, exceto quando tais leis estão de acordo com tais princípios. “Assim, só raramente nos aplicamos de corpo e alma a um objeto exterior a nós mesmos. E quando fugimos à norma é por simples gesto de retirada, descompassado e sem controle, jamais regulados por livre iniciativa. Somos notoriamente avessos às atividades morosas e monótonas, desde a criação estética até às artes servis, em que o sujeito se submeta deliberadamente a um mundo distinto dele: a personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador. É freqüente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. As contradição que porventura possa existir entre elas parece-lhes tão pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam sinceramente quando não achássemos legítima sua capacidade de aceitá-las com o mesmo entusiasmo. Não há, talvez, nenhum exagero em dizer-se que quase todos os nossos homens de grande talento são um pouco dessa espécie” (p. 113).
“Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve atribuir-se tal fato sobretudo às insuficiências do ‘americanismo’, que se resume até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente” (p. 127).
Para Holanda a democracia só se efetivará no Brasil quando os fundamentos personalistas forem liquidados. “Em palavras mais precisas, somente através de um processo semelhante teremos finalmente revogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar” (p. 135). Isso só será possível quando se efetivar uma revolução no país, mas não uma revolução horizontal, que só serve para atropelar os menos afortunados. Trata-se de uma revolução que “tenha como arremate a amalgamação, não o expurgo, das camadas superiores; camadas que, com todas as suas faltas e os seus defeitos, ainda contam com homens de bem. Lembrai-vos de que os brasileiros estão hoje expiando os erros dos seus pais, tanto quanto os próprios erros. A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes. Se as classes cultas se acham isoladas do resto da nação, não é por culta sua, é por desventura” (p. 135).

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 12ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

3/07/2007

Algumas considerações sobre a relação teoria e prática no Serviço Social*

O debate sobre a relação entre teoria e prática no Serviço Social é datado em seus primórdios e, via de regra, se vincula a concepções e autorepresentações sobre a profissão. É comum ouvirmos o aforismo: “na prática a teoria é outra”
A primeira concepção que podemos destacar é a que reivindica o caráter prático-interventivo como sendo prioritário e absoluto, desconsiderando aspectos teóricos. Trata-se de uma concepção pragmática da prática, que atribuí à teoria puro papel abstrato. Por outro lado, temos a orientação e concepção em que glorifica a teoria em relação à prática. Trata-se de atribuir aos defensores do saber o poder mágico de solucionar através de receitas pré-formuladas os desafios postos à profissão. Ambas as concepções estão unidas pela incapacidade de não realizarem a práxis social. A práxis social pode se realizar em três níveis: repetitiva, mimética e inventiva.
A práxis repetitiva recomeça os mesmos gestos, os mesmos atos em ciclos determinados. A práxis mimética segue modelos; pode suceder que, imitando, ela chegue a criar, mas sem saber como nem por que; mais frequentemente ela imita sem criar. Quanto à práxis inventiva e criadora, ela atinge seu nível mais elevado na atividade revolucionária (LEFEBVRE, 1966, p. 37).
Desta maneira, é preciso compreender que práxis é, antes de tudo, ato; relação dialética entre a natureza e o homem, as coisas e a consciência e esta relação tanto pode ser no sentido de manter a ordem (repetitiva ou mimética) ou uma tentativa de ruptura (mimética sem consciência e inovadora), o que estará como pano de fundo será a visão social de homem e de mundo com suas determinações no mundo do trabalho.
De um lado temos a teoria como um conjunto de conhecimentos organizados e sistematizados que propõem a explicação da realidade social que se apresenta à atividade prática. Do outro, temos a prática como intervenção e ação nesta própria realidade. Formam uma unidade que potencializa o papel transformador e propositivo da prática e possibilita a compreensão da realidade em sua concretude, abrindo um leque de possibilidades diante de um dado contexto histórico e social.
Uma práxis profissional pode flutuar entre os três níveis considerados por Lefebvre, não são estanques na realidade objetiva. O seu desenvolvimento é realimentado constantemente no processo de trabalho profissional. São fatos, acontecimentos, informações, interesses, pensamentos, conflitos e saberes que se mesclam e se fundem em uma relação dialética, ou seja, em constante movimento contraditório. O trabalho profissional tem que ir além da repetição e mimetismo que configuram a vida cotidiana, é necessário criar e inventar, ou seja, rodar a roda da história. Nos dizeres de Iamamoto:
[...] ir além das rotinas institucionais e buscar apreender o movimento da realidade para detectar tendências e possibilidades nela presentes passiveis de serem impulsionadas pelo profissional. [...] as possibilidades estão dadas na realidade, mas não são automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos, desenvolvê-las transformando-as em projetos e frentes de trabalho. (2000, p. 21)
O primeiro momento desse processo trata-se, sobretudo, de conhecer, desvelar e desmistificar as mediações e contradições existentes na realidade vivenciada pelos usuários, os quais estão inseridos em uma realidade particular determinada por aspectos gerais da sociedade capitalista atual, que é completado com uma atuação que considere tais aspectos e se desenvolva consciente, crítica e criativa, realimentando o próprio ciclo da formação da particularidade em os indivíduos estão inseridos.
No entanto, existe um problema importante, que se configura como pressuposto fundamental na relação entre teoria e prática e que na maioria das vezes é confundido como esterilidade teórica, causando, via de regra, o praticismo, o pragmatismo, entre outros. Para compreendermos tal problema, convido pensarmos juntos a partir da seguinte questão extraída da prova de um concurso público:

47. Ao se trabalhar com famílias, o profissional deve ter presente que não se pode pensar a família como um modelo pré-estabelecido e que, na maioria das vezes, só existe de forma idealizada. Assim, pode-se afirmar que não existe um tipo ideal de família, mas sim vários tipos de “famílias”. No primeiro passo para o estabelecimento de um trabalho eficiente deve-se utilizar, de maneira metodologicamente correta,

(A) a crítica construtiva.
(B) o trabalho grupal.
(C) o julgamento.
(D) a observação.
(E) a entrevista com os parentes.


Bibliografia
IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.
LEFEBVRE, Henri. Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
SILVA, José Fernando Siqueira. Teoria e prática no trabalho profissional do Assistente Social: falsos e verdadeiros dilemas. Serviço Social & Realidade, v. 14, n. 02, Franca, Unesp, p. 133-154


Relacionar alguns aspectos do texto com a música a seguir:

Brincar de Viver (Guilherme Arantes – Jon Lucien)

Quem me chamou
Quem vai querer voltar pro ninho
E redescobrir seu lugar
Pra retornar e enfrentar o dia-a-dia
Reaprender a sonhar
Você verá que é mesmo assim
Que a historia não tem fim
Continua sempre, que você responde sim
A sua imaginação
A arte de sorrir
Cada vez que o mundo diz não
Você verá, que a emoção
Começa agora, agora é brincar de viver
Não esquecer, ninguém é o centro do universo
Assim é maior o prazer
Você verá que é mesmo assim
Que a história não tem fim
Continua sempre, que você responde sim
A sua imaginação
A arte de sorrir
Cada vez que o mundo
Diz não
...
* Texto utilizado na aula de Fundamentos do Serviço Social II

10/11/2006

Serviço Social e a Sétima Arte

Introdução
O presente estudo trata-se de um diálogo estabelecido entre Serviço Social e a Sétima Arte. No primeiro momento será abordada a Arte numa perspectiva filosófica. O segundo consiste em entender o Cinema como arte e suas correlações com a perspectiva filosófica apresentada. Em terceiro lugar vem o Cinema e suas diversas manifestações e concreções no âmbito psicológico, histórico e social. E por fim, analisaremos a utilização do Cinema na prática do Serviço Social enquanto mediação que contribui para a construção do sujeito consciente e de transformação da particularidade social.

1. Filosofia e Arte
O debate sobre a arte respira ares que perpassam deste a distinção entre erudito e popular até manifestação artística e indústria cultural. Na perspectiva filosófica da arte em si e para si estes elementos encontram-se num plano secundário, portanto, nossa intenção inicial é estabelecer o debate no âmbito da profundidade filosófica, dialogando, sobretudo, com Hegel.
Para o pensador da dialética idealista o Espírito se manifesta de particularmente de várias formas, sendo a arte uma delas. O Espírito para Hegel representa o caráter essencial do gênero humano, é a essência absoluta que se apóia em si mesma e que ao se manifestar, por meio de uma atividade, no caso, a arte, retorna a si. “O homem como espírito não é algo imediato, mas sim algo de essencialmente reflexo, retornado a si mesmo. Esse movimento de mediação é um momento essencial do espírito. Sua atividade é o ir além da imediaticidade, a negação dessa imediaticidade, e, assim, o ato de retornar a si mesmo; o espírito, portanto, é o que ele faz a si mesmo com sua atividade. Só o que retornou a si é o sujeito, é verdadeira realidade. O espírito só existe como resultado de si mesmo” (HEGEL, 1927, p. 35).
Hegel (1983, p. 42) denominou este movimento de alienar-se e retornar a si mesmo de liberdade. Esta é a finalidade absoluta do Espírito, sua função mais elevada. E a arte tem esse poder. Ela tem a capacidade de manifestar sensivelmente as idéias mais elevadas, tornando-as acessíveis ao homem situado histórica e socialmente. A aparente ilusão da manifestação artística revela elementos da essência humana, pois a verdade tem que aparecer. Evidentemente, ela não é o único e exclusivo meio de manifestar essa função. O próprio Hegel indica movimento semelhante no mundo empírico, no qual a essência é desvelada pelo ato de pensar.
O conteúdo da arte coincide com o conteúdo do Espírito. Seu fim é revelar ao homem o que o Espírito tem de essencial, de grande, de sublime, de verdadeiro. É indiferente saber se a arte representa situações reais ou se são criações da imaginação. O fato é que nos oferece e nos causa sentimentos que muitas vezes nossa experiência individual não nos proporcionaria, mas, ao mesmo tempo, são sentimentos que nos faz sentir profundamente o que se passa em nós mesmos. Não importa seu conteúdo: sentimentos de felicidade ou infelicidade ou medo ou pânico ou sexual. Não difere se o conteúdo é erudito ou popular. O ser humano é rico de sentimentos. E a arte aparece como um poder formal sobre esses sentimentos, independente da natureza do seu conteúdo (HEGEL, 1991, p. 23-25).
Está função formal da arte, possui a capacidade de unir o Eu limitado ao humano-genérico (para utilizarmos os termos de Agnes Heller, O cotidiano e a História). Este movimento transforma o que é individual em social, nega o Eu e, ao mesmo tempo, conserva-o na mediação com a universalidade do Espírito. Efetiva-se por um processo dialético de sua própria negação e conservação. Assim, “se quiser marcar um fim último à arte, será ele o de revelar a verdade, o de representar, de modo concreto e figurado, aquilo que agita a alma humana” (HEGEL, 1991, p. 50).

2. Cinema: a sétima arte
No final do século XIX, a Europa presencia um conjunto de invenções técnicas que deram fusão à invenção de mecanismos capazes de dar movimento à imagem fotográfica. Atrelado à curiosidade das várias classes sociais, o interesse econômico constitui a mola propulsora para desenvolver esta técnica capaz de reproduzir imagem e som de um elemento ou fenômeno. Criam-se as técnicas cinematográficas, consagrando a era da ciência moderna de dominar a natureza.
O cinema surge como espetáculo para as massas. Será em 1911, que Ricciotto Canudo publicará em Paris um manifesto intitulado de Manifesto das Sete Artes, inaugurando o cinema como arte erudita (XAVIER, 1978, p. 38). Conforme Canudo: “A sétima Arte representa, para aqueles que assim a chamam, a poderosa síntese moderna de todas as Artes: artes plásticas em movimento rítmico, artes rítmicas em quadros e esculturas de luzes. Eis nossa definição do cinema; e, bem entendido, pelo cinema arte como o compreendemos e em direção ao qual nos batemos. Sétima Arte, porque a Arquitetura e a Música, as duas artes supremas, com suas complementares – Pintura, Escultura, Poesia e Dança – formaram até aqui o coro hexa-rítimico do sonho estético dos séculos”
Porém, a discussão do cinema como arte não se encerra com o manifesto. A criação e ampliação da indústria cultural redimensionam o lugar do cinema na sociedade, polemizando o debate sobre sua teoria. A transformação do cinema em mercadoria, sobretudo nas mãos dos norte-americanos, faz com que sua autonomia artística se perca no fetiche das relações mercantilizadas das entranhas de Hollywood. Adorno é quem faz a crítica mais severa a este processo. Para ele o cinema não possui o estatuto de arte autêntica, pois representa o carro chefe da indústria cultural. Não passa de um negócio de cunho ideológico. No entanto, esta sua visão reflete um contexto particular: Adorno está nos EUA e analisa o cinema hollywoodiano dos anos 1940. Não está em contato com obras alternativas produzidas na Europa. Sua crítica destrutiva é uma generalização inconseqüente (SILVA, 1999, p. 116-119).
No entanto, em 1966, Adorno se redime da equivocada posição assumida na década de 1940. No texto Notas sobre o filme ele recoloca o debate em outros termos. Reconsidera sua posição destrutiva e fechada indicando a possibilidade de construir o cinema como arte emancipadora. Trata-se de uma concepção em que o cinema tem a função de reproduzir objetivamente uma experiência subjetiva, não confiando, entretanto, excessivamente na tecnologia, que contamina as produções artísticas autônomas e criativas. Nos dizeres do próprio pensador: “Como seria bonito se, na atual situação, fosse possível afirmar que os filmes seriam tanto mais obras de arte quanto menos eles aparecessem como obras de arte” (ADORNO, Theodor W. Notas sobre o filme, 1966 apud SILVA, 1999, p. 121).
O debate sobre o status ou não do cinema como arte não se limita ao referido autor e nas questões levantas. Ele se imbrica em um vasto campo de aspectos e fenômenos contemporâneos que fogem aos objetivos do presente texto. No entanto, para prosseguirmos em nossos estudos sobre o cinema apresentaremos três elementos deste debate firmando-os como pressupostos teóricos e práticos de nosso trabalho. Primeiro: mesmos os filmes considerados arte estão, de uma certa forma, enredados nos meandros da indústria cultural (SILVA, 1999, p. 126). O segundo parte-se de uma indagação: quem tem a legitimidade de atribuir o status de arte a uma obra? No entanto, a questão quando apresentada nestes termos reflete uma simplicidade ingênua e uma superficialidade radical. Por isso, para não cairmos nas armadilhas do senso comum e de sua imediaticidade generalizada faz-se necessário redimensionar a questão nos termos da nossa compreensão de arte, pois assim teremos a possibilidade de traçarmos caminhos seguros. E será desta relação que emergirá o nosso terceiro elemento: mesmo um filme produzido para fins mercadológicos pode cumprir a função formal da arte, evidenciando questões elevadas do Espírito. Evidentemente, irá depender de vários fatores como público, objetivo, temática, entre outros, que abordaremos em outro momento. Mas o que queremos destacar no momento não é o conteúdo da arte que expressa sua função essencial, mas esta se encontra como dito anteriormente em sua forma. As determinações genéricas do homem, embora ocultadas, mistificadas e ideologizadas, também estão imbricadas nos filmes produzidos pela indústria cultural: “o genérico está ‘contido’ em todo homem e, mais precisamente, em toda atividade que tenha caráter genérico, embora seus motivos sejam particulares” (HELLER, 1985, p. 21).
Em resumo, não podemos genericamente engessar as produções cinematográficas em conceitos abstratos. Cada obra representa e apresenta sentimentos e emoções universais que, dependendo de sua manifestação particular, cumprirá ou não sua função como arte, ou seja, será na mediação concreta entre o universal contido no filme e o espectador singular que ele se construirá ou como uma propaganda ideológica ou como uma arte reveladora do Espírito.

2.1 O Cinema e suas manifestações
A preocupação em entender o cinema resultou em teorias que o analisam em seus diversos papéis, dentre os quais destacamos o histórico, o ideológico, o psicológico e o social. No âmbito da História temos a contribuição significativa de Marc Ferro. Para ele não basta uma simples análise do conteúdo do filme. É preciso “analisar a narrativa, o cenário, o texto, as relações do filme com o que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime. Pode-se assim esperar compreender não somente a obra, como também a realidade que representa” (In: LE GOFF; NORA, 1976, p. 203).
No âmbito da discussão da História encontramos imbricada a discussão do papel ideológico dos filmes. Expressando uma visão social de mundo a ideologia omite elementos da realidade e evidenciam outros como sendo a verdadeira realidade. No caso, fatos do processo histórico são omitidos intencional ou ocasionalmente: “O realizador [do cinema] constrói sua própria realidade mesmo quando aparentemente está trabalhando com fatos objetivos” (FURHAMMAR, 1976, p. 146). O filme é uma construção ideológica e não um fiel registro da realidade. Como a ciência, o cinema não é neutro. São pontos de vistas parciais que revelam elementos do geral e que precisam ser desmistificados pelo espectador, que muitas vezes não possui as informações necessárias para tal intento. Esta parcialidade decorre do movimento universal contraditório da sociedade dividida em classes sociais contraditórias entre si.
A questão psicológica abarca diversos elementos. São muitos os autores que se preocupam com a temática, podemos citar Moussinac, Dulac, Vertov, Arnheim, entre outros. Cada um possui uma visão e uma direção para seus estudos. No entanto, é comum encontrarmos nestas abordagens a questão do ritmo dos movimentos das imagens. É através deste que se desperta a sensibilidade psicológica. A temporalidade do cinema vincula-se a esfera sensorial do ritmo plástico da imagem à narração teórico-ideológica que se reduzirá a uma dimensão psicosensorial. Moussinac assevera, por exemplo, que “assimilamos o filme indo do particular ao geral, uma vez que há um desfile temporalizado de imagens” (apud XAVIER, 1978, p. 83). Será o ritmo que proporcionará a assimilação e memorização do tema. O ritmo dos personagens é traduzido para o ritmo psicológico do espectador. A dinâmica rítmica educa a sensibilidade cognitiva do mundo moderno: o homem é obrigado a pensar rápido acelerando a noção de espaço-tempo.
O debate no âmbito psicológico se inter-relaciona com o social por meio de duas grandes teorias do cinema: 1. Teoria da montagem do Russo Segei Eisenstein; 2. Realismo ontológico do francês André Bazin. A primeira está “ancorada na teoria marxista do materialismo dialético, ele defende que o confronto de um plano-tese com um plano-antítese seria responsável por um efeito de síntese junto à sensibilidade do espectador, o qual captaria a mensagem do realizador através desse processo dialético” (BRITO, 1992, p. 99).
A segunda, por sua vez, está fundada na visão paradigmática de um realismo fotográfico em que não cabem metáforas entre planos. Nessas duas teorias insere-se o processo de ideologização de um filme, o qual é construído pela diegese, que é “todo o universo fictício, temporal e espacialmente concebido, manifestado ou implícito num filme; o que inclui, portanto, não só a sua narração, como também os seus aspectos descritivos subentendidos ou não” (BRITO, 1992, p. 100). A diegese é dividida em homodiegética, elementos internos do filme, por exemplo, uma música que o protagonista escuta, e heterodiegética, elementos externos que combinam com o universo interno do filme, por exemplo, uma música que apenas o espectador ouve. É com base nesta última que as metáforas são construídas e a ideologia aperfeiçoada. Não significa que na homodiegética, calcada na teoria do realismo fotográfico, não tenha uma ideologia. O fato é que na segunda tem-se um aperfeiçoamento psicológico do aspecto social da ideologia. É um refinamento em detalhes que produzem efeitos, visões e opiniões, mas que passam em geral despercebidos pelo espectador, produzindo um estado de excitação emocional que o torna mais receptivo à influências.
O nível de influência determina o alcance do Eu ao Espírito. Quanto mais aperfeiçoadas as metáforas, mais emoções provocadas e contempladas, cumprindo, portanto, com sua função formal da arte. É como Toltoy definiu: “A influência não só é um sinal certo de que algo é arte, como também o grau de influência é a única medida do valor da arte” (apud FURHAMMAR, 1976, p. 145). Contudo, a influência dependerá de sua inserção no processo contraditório social, vinculado a uma determinada visão social de mundo definida por um ponto social e historicamente situado. Seu alcance subjetivo está sujeito ao nível de objetivação na particularidade social. É neste espaço que se insere a atuação profissional do Serviço Social, a qual será objeto de análise no próximo item.

3. Serviço Social e o Cinema
O cinema tornou-se a arte moderna mais difundida pelo mundo todo. Ele angaria milhares de apreciadores (da arte) e milhões de espectadores da indústria cinematográfica. Embora heterogêneo, o público do cinema possui características comuns. O desejo de estimular os sentidos via distração é a característica mais corriqueira. O gosto pelo filme é consenso. No entanto, sabemos que a dinâmica definidora de seu público reflete a estrutura econômica e cultural da sociedade em geral. Via de regra, o acesso é restrito a classes economicamente favorecidas. Os cinemas localizam-se em Centros Comerciais, que muitas vezes são ambientes hostis à população carente, pois evidencia a desigualdade social da sociedade. Portanto, proporcionar à população usuária do Serviço Social o acesso ao cinema é colocá-las diante de significados contraditórios, pois apresenta o encantado universo da arte cinematográfica e, simultaneamente, representa a própria negação deste universo pela posição econômica na sociedade capitalista.
Diante a tais contradições, o uso de filmes pelo Assistente Social pode incidir em insucessos profissionais no ponto de vista de seus objetivos, sobretudo, educativos. O uso de filmes requer uma preparação anterior, um rito durante e um exercício posterior e não apenas apertar o Play. Além da temática é preciso pesquisar e compreender a época de sua produção, visão de mundo do diretor, características da diegese e, sobretudo, valores, concepções e visões do público alvo. O uso do cinema possui e revela detalhes que aparecem para alguns e se escondem para outros. Produz significados que precisam ser refletidos antes, durante e após a exibição. Não é apenas mostrar uma realidade, mas pensar sobre ela. Construir conexões com a realidade do público. Ir para além da aparência construindo a mediação entre o singular e o universal para que a função da arte seja alcançada no sentido de ocorrer a mudança necessária e não reproduzir a situação vivenciada.
O uso do Cinema não se limita a assisti-lo. É importante destacar que o filme é o produto final do cinema e que este possui outros aspectos e inter-relaciona às seis outras artes (Arquitetura, Música, Pintura, Escultura, Poesia e Dança). Existe uma gama de recursos cinematográficos e artísticos que podem ser usados no trabalho profissional. Uma alternativa é engendrar um processo de construção cinematográfica. Por exemplo, usar filmadoras, máquinas fotográficas, encenações teatrais (filmadas ou não), recitais e músicas. Todos são recursos importantes para exteriorizar e interiorizar o humano-genérico, pois exteriorização e interiorização são dois momentos do movimento do Espírito: “Quando a interiorização não ocorre, isto é, quando o Sujeito não se reconhece como produtor das obras e como sujeito da história, mas toma as obras e a história como forças estranhas, exteriores, alheias a ele e que o dominam e perseguem, temos o que Hegel designa como alienação” (CHAUÍ, 1984, p. 41).
A determinação e conexão entre esses dois momentos ocorrem na particularidade. Particularidade não é apenas a ligação, mas o centro organizador, por tal é o ponto de partida e chegada dos movimentos correspondentes entre particularidade e generalidade e entre particularidade e singularidade. Ela é a mediação necessária produzida pela essência da realidade objetiva e imposta por ela ao pensamento. A particularidade desvela as determinações ocultas na imediatez da singularidade, pois ela própria é a criadora dessas determinações. A natureza contraditória da particularidade pode desembocar na alienação ou na construção do sujeito histórico crítico. A prática do Serviço Social insere-se neste espaço contraditório. É uma particularidade que contribui para o processo de mudança do singular e do geral. E que também se modifica em termos de sua singularidade e generalidade. O Cinema será uma ferramenta social e particularmente importante para a construção desse sujeito. Sua estética possibilita superar as insuficiências da singularidade puramente imediata – o empírico – e as generalidades de esquemas formais e abstratos que manipulam o real.
No trabalho profissional é preciso ter a consciência que a utilização do Cinema não serve apenas como contemplação da realidade. Ele se realiza enquanto mediação, que serve para a construção da singularidade e da generalidade na realidade. E como bem mostrou Lukács (1966, p. 200), essas categorias “não são pontos de vista dos quais o sujeito contemple a realidade, ou perspectivas que introduza nela; ao contrário, são evidenciados e destacadas características essenciais dos objetos da realidade objetiva, de suas relações e vinculações, sem cujo conhecimento o homem não pode nem se orientar em seu mundo circundante, e também dominá-lo e submetê-lo a seus fins”.
O Cinema, portanto, utilizado na formação e prática profissionais e considerando os aspectos referidos no presente artigo não se limita apenas a função de unir o indivíduo ao humano-genérico ele tem a possibilidade de construção do indivíduo como ser que supera a imediatez da alienação particular e se refaz como ser genérico e consciente de sua historicidade.

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